terça-feira, 16 de março de 2010

CUMPLICIDADE - Zé Lúcio Cardim


CUMPLICIDADE


Peço licença para começar o ano contando uma experiência pessoal. Foi nametade de dezembro, quando treinava para a última etapa do Circuito dasEstações. Já no clima do final de ano e seus excessos, acabei "matando" o longo do sábado. Acordei tarde, o sol já estava forte demais ... Enfim, não era nada demais, já que não passava de um "longo curto", uma hora de corrida preparatória para uma prova de 10 krn, e o domingão vinha aí, cheio de novas possibilidades. O problema é que, no dia seguinte, ao contrário da véspera, nem sinal do sol. Ao contrário, como dizia minha avó, chovia canivete. Sete, oito, nove horas ... E nada de a chuva dar trégua. Lá pelas 10h 30, impaciente e com a consciência pesada por "cabular" o treino do dia anterior, resolvi enfrentar o aguaceiro mesmo. Afinal, nada como correr sob um temporal para lavar a alma. Como quase tudo nesta vida, correr na chuva tem suas vantagens e desvantagens.Os tênis e a camiseta encharcam, ficam pesados e relativamente incômodos. Em compensação, as chances de desidratação são drasticamente reduzidas. Insolação, então ...Mais perturbador do que correr molhado, porém, eram os olhares. Impressionante como é possível perceber (ou pelo menos desconfiar com boa chancede acerto ...) o que as pessoas estão pensando pela maneira como nos olham. E os vigias das casas vizinhas à pequena praça na Zona Sul paulistana onde eu corria em torno, assim como os motoristas que passavam, eram taxativos:"O que o doido está fazendo?", "Esse idiota não tem coisa melhor para fazer?", "Tá se exibindo pra quem, ô superatleta" ... Nem de longe estragavama corrida, mas certamente não era o melhor dos sentimentos. Mas, em meio a tantas caras pouco amistosas, eis que surge outro "doido cretino metido a superatleta" em minha direção. Passa por mim em boa velocidade, acena ligeiramente com a cabeça, esboça um sorriso e segue em frente. Mais alguns minutos, vem uma garota brigando com o cabelo molhado que insiste em lhe cobrir o rosto enquanto corre. O ritual de reconhecimento e respeito se repete. E, ao longo do treino, éramos meia dúziade criaturas ensopadas, felizes e, que, de alguma maneira, fosse sorrindo, mexendo o pescoço ou simplesmente olhando nos olhos de quem nos cruzava o caminho, deixávamos claro a absoluta compreensão do que estávamos fazendo ali, por que e de que éramos uma espécie diferente - que, entre outras coisas, corre na chuva e acha maravilhoso. Por isso, se você gosta de correr na chuva, no sol do meio-dia, no asfalto, na areia, à noite, numa estrada esburacada, de tênis importado, 'descalço, para chegar antes ou para não chegar em lugar nenhum, saiba que nós, da 02, entendemos perfeitamente. E mesmo que te olhem como se você fosse algum louco varrido, a verdade é que nós sabemos - e você sabe! - que somos corredores, apenas corredores. E que isso faz de nós pessoas muito especiais. Corra!
Zé Lúcio Cardim